O outro

Ann Lukesh

A lepra era considerada na Bíblia e no Judaísmo como a mais terrível doença que podia afetar um homem. Daí o cuidado em evitá-la, excluindo o leproso da comunidade e destruindo tudo o que pudesse ter a sua mancha. A legislação de Moisés sobre a lepra não tinha preocupações terapêuticas; visava apenas defender e preservar a comunidade de qualquer contaminação. Segundo a Lei, os leprosos tinham de andar com as vestes rasgadas, os cabelos soltos, e a cara tapada; ao pressentirem alguém aproximar-se, eram obrigados a gritar “Impuro!”, a fim de que os sãos se afastassem. Estavam rigorosamente proibidos de entrar em Jerusalém ou nas aldeias e cidades. Fora disso, podiam viver onde quisessem, mas fugindo sempre do contacto com os sãos. Em muitos lugares havia uma espécie de refúgios, cidades dos mortos, para onde os leprosos eram enviados, sem retorno, bem como, mais tarde os cristãos atacados pela doença, já devidamente sacramentados com a então dita extrema unção!. Eram na prática mortos-vivos. 

Não podemos, pois, entender esta palavra lepra no mesmo sentido que ela tem hoje na ciência médica. O facto de os leprosos serem obrigados a mostrar-se ao sacerdote indica também que, por detrás da lepra, havia forças misteriosas que era preciso esconjurar. Israel, o povo de Iavé, tinha de ser um povo puro. A teologia rabínica considerava que a era um castigo de Deus. Daí a pergunta que um dia os discípulos fizeram a Jesus: “quem pecou, ele ou os pais?” (Jo 9,2)

Isto durou Idade Média dentro até quase ao nosso tempo: não sei se alguém viu um curioso filme Molokai, terra maldita, uma ilha perdida no Pacífico onde se recolhiam os leprosos expulsos da sociedade europeia. Conhecida a doença só praticamente no fim do século passado, o seu diagnóstico, que ainda hoje é relativamente difícil, era mesmo assim muito complicado. E, como sempre acontece nestes casos, quando uma coisa se não conhece com precisão, alarga-se-lhe o quadro. Por isso, no mundo antigo, leproso era todo aquele que tivesse uma qualquer dermatose (doença da pele). Se, na Antiguidade, nada mais lhe restava senão ser apartado da sociedade e esperar a morte perdidos pelos montes, na Idade Média passou a ser acolhido numa leprosaria ou gafaria (gafo era um outro nome dado ao leproso), construída normalmente com dinheiro de gente rica deixado em testamento para essa “obra de caridade”). Onde haja uma ponte antiga ou medieval, Alfena ou Lagoncinha, por exemplo, lá está sempre uma capela de S. Lázaro, o padroeiro destes doentes, a dar notícia de uma antiga gafaria.

Lázaro, o pobre da parábola do rico (Lc 16,19-31) que tinha o corpo coberto de chagas, portanto leproso, tornou-se S. Lázaro e acabou por tornar-se o advogado dos doentes leprosos. Daí os lazaretos (também ditos leprosarias ou gafarias) construídos ao lado das poucas pontes que existiam e os lazarentos! S. Lázaro, portanto, o patrono dos excluídos, dos leprosos, mas também dos padeiros!, ou não é verdade que eles estão de algum modo excluídos da sociedade, até trabalham de noite e dormem de dia! Aqui está. Da doença à exclusão!

Lembro-me muito bem. Na década de 1950, mesmo em frente da casa dos meus Pais, morava a Ti Rosa Lopes com um sobrinho seu, já adulto e leproso. Nós não podíamos tocar-lhe…, fugíamos. Um dia, inesperadamente, aparece uma carrinha, querem pendê-lo, não conseguem apanhá-lo nem a pontapé, pois o queriam levar para a leprosaria Rovisco Pais, da Tocha, o que conseguiram de uma maneira desumana e bestial. Nós ficámos a chorar. Pouco tempo à frente disseram-nos que o Francisco tinha morrido. E nós, miúdos, voltámos a chorar.

Por tudo o que conto, pouco a pouco nasceu nas populações o sentimento de defesa do contágio e a atitude da exclusão do que não é como nós. E isto foi terrível; isto é terrível, ontem como hoje. 

Nada disto é novo. Excluídos e a excluir foram, ao tempo, os cátaros e todos os dissidentes, heréticos ou não, queimados vivos quantos!, os defensores da pobreza e dos pobres a partir do séc. XII, etc., etc. E em Espanha, durante séculos, houve uma limpeza de sangue que era preciso provar, instrumento jurídico aprovado pela Igreja e pelo poder real que, até ao séc. XIX, excluía de muitas corporações e do território nacional os judeus e seus descendentes, os mouros e os penitenciados da Inquisição? 

E, em Portugal, como se passaram as coisas com a história dos cristãos-novos e cristãos-velhos, quando só estes tinham certos direitos que eram negados aos outros, muitas vezes apenas suspeitos que não conseguiam provar que não eram descendentes de judeus nem de mouros, o que, em definitivo tinha que ser feito até à sétima geração?

Um exemplo. Na vila que existiu ao lado da ponte de Canavezes onde houve uma capela de S. Nicolau e uma gafaria, os leprosos das leprosarias não podiam tomar banho nas caldas, tinham de o fazer à parte em duas tinas de pedra.

E como era no Estado Novo? Para ser funcionário público, por exemplo, e outros cargos, que era preciso fazer o juramento anticomunista? E na Igreja, como era? Não era preciso fazer (e eu fiz sem perceber o que fazia!) o juramento anti modernista? Não é verdade que foi tudo isto junto, toda esta mentalidade, que originou o holocausto antissemita dos nazis, o ódio entre palestinianos e judeus e vice-versa ou entre muçulmanos e europeus (cristãos)?

A Europa cristã teve sempre as suas lepras e os seus leprosos. Porque a mania da limpeza acabou, quantas vezes, a passar por cima de todas as exigências da liberdade, da igualdade e da fraternidade, para não falar nem da caridade nem do respeito mais liminar da dignidade e da sacralidade do Homem, exclusão social, marginalização social, xenofobia, racismo, sei lá que mais.

O Outro é sempre um perigo. Entre as nações (guerra quente ou guerra fria), na política, na economia, no comércio, na escola, o vizinho do lado, o tipo que vai à minha frente na estrada ou que vem atrás em cima de mim, o Outro não é meu irmão, é leproso, afaste-se e grite que é impuro, porque não tem nem direito nem saúde nem dinheiro, porque não é igual a mim e porque é diferente e perigoso por causa do que tem e do que pensa, é perigoso mesmo que eu saiba que ele é bom e que tem ideias e exatamente porque são as suas. Por essas e por outras é que Ele, comedor e bebedor, evidentemente leproso e amigo de mulheres e outras gentes de má vida, publicanos e pecadores, teve o fim que teve!